Confira íntegra do texto:
1 – Partindo dos Lineamenta
No trecho do questionário relativo à
terceira parte da Relatio Synodi – dedicada às perspectivas pastorais
(cf. 23-46) – se afirma que o Sínodo extraordinário iniciou uma "viragem
pastoral", e que esta deve ser levada adiante em seus aprofundamentos e
implementação, evitando-se "começar de zero" no caminho já iniciado
pelo processo sinodal.
E, antes das perguntas relativas (cf.
35-39) ao tópico intitulado Cuidar das famílias feridas (separados,
divorciados não recasados, divorciados recasados, famílias
monoparentais), se insiste, citando a Evangelii gaudium, na necessidade
de encrementar a arte do acompanhamento, da proximidade com as diversas
situações.
Quanto às motivações que conduzem hoje a
se refletir sobre essa viragem pastoral, sobretudo no que concerne a
situação dos divorciados recasados, fazem-se necessárias algumas
observações:
a – O acompanhamento pessoal como critério de mudança
A perspectiva do acompanhamento das
pessoas, ou do desenvolvimento de uma pastoral de proximidade, deve
nortear qualquer proposta que venha a sugerir mudanças no modus operandi
da aplicação do direito canônico, da doutrina da Igreja sobre os
divorciados recasados e, consequentemente, da ação pastoral quotidiana,
sob pena de se pretender dar soluções que vão no sentido contrário do
que se intenta, isto é, uma maior acolhida mais humana e menos
"burocrática", segundo a misericórdia e a verdade em relação à vida e às
situações concretas das pessoas de nosso tempo. O Papa Francisco, no
dia 07 de dezembro de 2014, ou seja, após o Sínodo, afirmou ao Jornal
Lanación: "E no caso dos divorciados recasados, colocamo-nos: que
podemos fazer para eles, que porta se lhes pode abrir? E foi uma
inquietação pastoral: então, vamos lhes dar a comunhão? Não é uma
solução se lhes damos a comunhão. Só isso não é a solução: a solução é a
integração."
b – A viragem pastoral exige uma conversão pastoral com criativa caridade
Para fins de ação pastoral mais
consequente ou cada vez mais consequente em relação à vida dos
divorciados recasados no seio da Igreja hoje, se evoca a necessidade de
se assumir a realidade do aumento do número de divorciados no mundo. A
ênfase dada ao aumento do número dos divorciados recasados no mundo tem,
no entanto, obnubilado o aumento, mais significativo em número na
atualidade, das uniões consensuais (no Brasil; em torno a 36% da
população de casais; unidos somente no civi: 17%; casados no civil e no
religioso: 42%) e das famílias monoparentais (7 milhões de lares no
universo de 57 milhões de lares no país. Esta quantidade de lares é
igual, se não for maior, ao número de lares de casais em segunda união
segundo os dados do IBGE). Segundo esses dados, não só no Brasil, mas em
outras partes do mundo, se começa a falar de declínio do número dos
divorciados recasados, algo que se constatará com muito mais acuidade
daqui a dez anos. Portanto, dar ênfase à situação dos divorciados
recasados é realismo até certo ponto!
Embora essa comparação em números não
exima a Igreja de se debruçar com mais caridade sobre a situação dos
casais em nova união, ela revela um certo desequilíbrio, para não dizer
grande disparidade de atitude, na proposta de alguns membros do clero,
teólogos, pastoralistas e leigos que se preocupam com uma mudança na
Igreja, a fim de que esta seja mais misericordiosa, pois negligenciam
não só os divorciados não recasados, mas também as uniões consensuais e
as famílias monoparentais, para os quais pouco ou nada é feito hoje na
ação pastoral, enquanto – sobretudo no caso do Brasil – temos muitas
atividades com casais em nova união.
A ousadia que se pretende na ação
pastoral da Igreja para com os casais em segunda união deverá – ou
deveria - também motivar a ação pastoral da Igreja em relação a essas e
outras situações, como o sugere os Lineamenta. Ademais, essa ousadia e
criatividade pastorais já poderiam estar atuantes de vários modos, ainda
que sem o acesso aos sacramentos da Eucaristia e Penitência, sem que se
fira a mensagem de indissolubilidade do matrimônio. Por exemplo, o
Instrumentum laboris recordava a prática da bênção pessoal para quem não
pode receber a eucaristia (cf. 104). Essa é realizada, em alguns
países, incluindo algumas paróquias no Brasil, com a acolhida dos casais
de segunda união na continuidade da fila da comunhão para receberem,
individualmente, uma bênçao do ministro ordenado. Por experiência, tal
gesto faz uma enorme diferença! O Papa emérito Bento XVI fez menção
positiva a essa prática em um recente texto divulgado pelos meios de
comunicação (cf. http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350933) e
publicado em um livro.
3 – Resolver problemas mais do que preveni-los?
Constata-se muita expectativa em
mudanças de "regras" doutrinais, ou disciplinares, a partir de Roma,
para depois se tomar iniciativas de acolhida. A falta de uma criativa
caridade pastoral na prática do cotidiano de nossas Igrejas não mudará
com a mudança de "regras", pois se o que se busca é trazer o sentimento
subjetivo de acolhida dos casais em segunda união pelo fato de terem
acesso, por exemplo, à Eucaristia, um verdadeiro acompanhamento de sua
situação, que também inclui, em grande parte dos casos, a dor pela
ruptura do primeiro casamento, requer tempo e dedicação pastoral
bastante ausente em alguns países. Essa atidude inclui também este
aspecto subjetivo da vida das pessoas, colocado mais em evidência na
atualidade, mas que deve, ao mesmo tempo, ser orientado para não se cair
em subjetivismos individualistas.
Há uma forte tendência na atualidade,
apontada e criticada por grandes filósofos, ao pragmatismo eficientista
Afirma-se, por alguns teólogos, que a
Igreja seria mais severa para com quem está em uma nova união do que
para com aqueles que vão se casar. No entanto, essa afirmação não é
seguida de uma proposta concreta em relação não só à preparação para o
matrimônio mas também ao acompanhamento da vida conjugal – como nos
propõe os Lineamenta - de tal maneira que haja maior prevenção das
situações de conflito e de ruptura da vida conjugal. Esse ainda é um
campo vasto a ser explorado. Durante muito tempo, e ainda é o caso em
muitos lugares, devido ao aumento de uma liberdade mais subjetiva e
individualista e à crescente privatização da família na atualidade, como
o apontam vários sociólogos, se temeu e se teme orientar os casais em
sua vida matrimonial, pois isso relevaria da vida "individual" e
"privada" de muitos. Além disso, há uma enorme falta de preparo do clero
e dos agentes de pastoral familiar. No entanto, tanto a Igreja como a
sociedade sabem muito bem, através de pesquisas (cf. Caritas na Itália),
o quanto um divórcio não ajuda a família, a própria Igreja e a
sociedade. Mas, mesmo assim, as medidas sociais e pastorais propostas
para tentar evitar a separação ou o divórcio são muito tímidas ou
inexistentes.
Se com razão alguns teólogos apontam
para uma visão jurisdicista (contratual) do matrimônio, a culpa não é só
– se é que há culpa – do modo como o Código de Direito Canônico define o
matrimônio, mas também, e sobretudo, de como essa realidade se viu
pouco a pouco envelopada por um aspecto puramente formal, sem maiores aprofundamentos de uma teologia da família, de caráter personalista,
como, de resto, Vaticano II já delineara e foi aprofundado por João Paul
II e outros na mesma esteira. Grosso modo, do lado do estudo do
sacramento, limitou-se aos seus aspectos canônico-jurídicos, sem uma
disciplina específica de uma teologia mais aprofundada do sacramento e
da própria vocação conjugal e familiar.
Nas últimas décadas, no âmbito da
teologia moral, por um lado, parece ter havido um estacionamento,
repetindo supercialmente os princípios da avaliação e das exigências dos
atos lícitos e ilícitos, sem muita confrontação com a realidade das
pessoas; por outro lado, numa perspectiva mais liberal, tentou-se
justificar uma abertura da Igreja aos métodos contraceptivos (um longo
debate com Humanae vitae) e a uma eventual mudança de perspectiva quanto
à posição da doutrina da Igreja relativa à indissolubilidade do
matrimônio, numa tentativa de acompanhar as mudanças sociais, confundido
atitude profética com conformismo. Tanto o lado mais rigorista quanto o
mais laxista parecem não ter lançando mão de algo que voltou com força
neste Sínodo: a lei da gradualidade, ou o caminho gradual feito por cada
um de nós no conhecimento e na vivência das exigências morais e no
aprofundamento do mistério da vida cristã. A isso se deu também o nome
de pedagogia divina, ou seja, o modo como Deus nos guia, sem forçar
ninguém, mas sempre propondo o ideal de santidade.
4 – Para onde o Sínodo nos orientará?
Não se pretende aqui, com essas
reflexões, afastar o debate teológico-doutrinal sobre modulações na
compreensão e na aplicação canônica e pastoral de posturas relativas aos
casais em nova união civil. Mas parece que o debate em torno à questão
do acesso aos sacramentos da Eucaristia e da Penitência deve passar por
ulteriores aprofundamentos; como, aliás, sinalizaram alguns dos círculos
menores de trabalho durante o último Sínodo. Postura que não
significaria retornar à estaca zero, mas dar continuidade ao debate que
tem sérias implicações e assume várias possíveis soluções. Isso não significa que não se possa avançar mais no que tange a participação ativa
e, por conseguinte, a acolhida dos casais em nova união no seio da
Igreja. Muito se poderia fazer, como já acontece no Brasil, quanto aos
encontros de casais e famílias nesta situação tanto com outros casais e
famílias quanto entre eles (lembre-se aqui o precioso trabalho do grupo
Bom Pastor no Brasil, com grande capilaridade nacional, e de outros do
mesmo tipo presentes em nossas dioceses. É interessante notar que os
casais que participam desses grupos não se levantaram para pedir ao
Sínodo o acesso à comunhão eucarística).
A respeito da pastoral sacramental dos
casais em segunda união, o n. 38 do questionário dos Lineamenta diz o
seguinte: "A pastoral sacramental a favor dos divorciados recasados
precisa de um ulterior aprofundamento, avaliando também a prática
ortodoxa e tendo presente 'a distinção entre situação objetiva de pecado
e circunstâncias atenuantes' (n. 52). Quais são as perspectivas em que
agir? Quais os passos possíveis? Quais sugestões para resolver formas de
impedimentos indevidas ou desnecessárias?"
A primeira observação que deve ser feita
é que a pergunta começa por uma afirmação: é necessário um ulterior
aprofundamento sobre a pastoral sacramental. A afirmação sugere que esse
ulterior aprofundamento será realizado durante o próximo Sínodo ou para
após o Sínodo? É de se notar que a conexão entre a afirmação e as
perguntas propriamente ditas nesta pergunta não deixe ao leitor uma
límpida compreensão do que se espera como resposta. No entanto, tentando
uma interpretação da mesma, parece que se solicitam respostas que
ajudem a avançar no sentido deste aprofundamento. O n. 52 do texto, ao
evocar uma eventual possibilidade de acesso à comunhão por parte dos
divorciados recasados também fala de uma questão que "ainda deve ser
aprofundada". Esse aprofundamento ulterior se justificaria mais ainda
pelo fato de que não se conhece com precisão essa "prática ortodoxa",
mencionada na pergunta n. 38, que se liga – o leitor deve deduzir... – à
menção de "um caminho penitencial" no parágrafo n. 52. A pergunta n. 38
ainda retoma a afirmação do parágrafo n. 52 sobre a questão da
imputabilidade do ato, com a qual – a experiência de conferências e
encontros o demonstra – até o clero tem dificuldades, quanto mais o fiel
mais simples.
Tudo isso faz com que a pergunta, no
final das contas, sugira questões muito técnicas, com o risco de se
esquecer que o parágrafo n. 52 do texto aponta duas posturas em relação à
possibilidade de acesso à comunhão por parte dos divorciados recasados.
E para que o debate seja imparcial, as duas posturas devem ser
aprofundadas.
Não é intenção aqui fazer um
aprofundamento pormenorizado sobre as duas posturas. Contudo, é
importante salientar, a respeito da postura que sugere manter a doutrina
atual da impossibilidade de acesso à comunhão, o quanto essa posição
tem sido tratada de modo simplório e sob olhares preconceituosos que lhe
aplicam taxativamente atributos pejorativos, tornando sua sustentação
quase arbitrária, como se fosse destituída de fundamentação teológica. O
que denota uma atitude temerária. Por outro lado, o Sínodo também
deveria suscitar reflexões que demonstrem a atualidade desta postura com
uma linguagem convincente que dê conta de sua pertinência e sua
manutenção. Tudo isso é também contribuição do Sínodo e já aparecem
publicações neste sentido.
No que concerne a postura que é
favorável ao acesso à comunhão, a proposta é avançada em circunstâncias
bem precisas e o acesso não é oferecido de forma generalizada (como o
próprio W. Kasper o sugere em seu livro. Condições que emanaram de sua
reflexão, retomando, em grande parte, as ideias de uma artigo de J.
Ratzinger de 1972, cuja conclusão, no entanto, o Papa emérito modicou no
texto recentemente publicado e mencionado acima), mas somente após um
caminho penitencial, como apontado nos Linemanta para a reflexão da
Igreja. Sem declinar o confronto com a proposta, percebe-se o quanto ela
exige ulteriores aprofundamentos. Não é evidente evocar uma "prática
ortodoxa" como inspiração, pois, como o demonstra E. Schockenhoff,
teólogo favorável ao acesso à comunhão para os recasados, a prática não é
uniforme e levanta alguns questionamentos sobre a forma de penitência
oferecida (cf. La Chiesa e i divorziati risposati. Questioni aperte.
Brescia: Queriniana, 2014).
Em relação às condições sugeridas por W.
Kasper para se conceder esse acesso à comunhão (cf. Il Vangelo della
famiglia. Brescia: Queriniana, 2014), talvez seja prático e fácil
aplicá-lo em uma Igreja sem muita expressão pastoral, como no caso de
várias Igrejas na Europa e nos EUA. Mas o acompanhamento pessoal desses
casos e o discenimento a ser feito sobre cada situação seria aplicável e
evidente numa Igreja em que se percebe que a "arte do acompanhamento"
não vem sendo trabalhada? Isso não requereria um tato e uma maturidade
que, caso faltem, poderiam causar mais danos do que ajudar? Isso não
suscitaria o sentimento de exclusão – o que se pretende eliminar – em
alguns não "aprovados" de imediato à comunhão? Não resta dúvida de que,
se a Igreja assume esta postura, deverá realizar um esforço hercúlio na
estruturação de condições mínimas de acompanhamento pessoal, o que
deveria também ser o caso da preparação para o matrimônio, para o
aconselhamento e o atendimento a situações de conflitos conjugais, a fim
de se evitar tratar somente o problema sem antes buscar preveni-lo.
4.a – Equidade pastoral: misericórdia e verdade se encontram.
Outra realidade atual na vida de nossas
comunidades – empiricamente verificável, sobretudo em nossas comunidades
menores - deve ser cada vez mais levada em consideração: imediatamente
após uma separação ou divórcio, seguidos de grave traição, a parte
culpada não hesita em frequentar a igreja sozinha ou, com frequência, já
com outra pessoa. Isso tem causado o abandono da outra parte da Igreja,
por se sentir humilhada na presença daquele ou daquela que a traiu gravemente e que, além disso, já se encontra em relacionamento com outra
pessoa. Isso revela, por um lado, que o sentimento de exclusão, evocado
por muitos em defesa de maior abertura para com os recasados, está
talvez mudando em relação à percepção da existência do mal cometido. Por
outro lado, pode-se dizer que é um bom sinal que não tenham vergonha de
frequentar a vida da comunidade, e tem-se aí a oportunidade de uma
evangelização em vista também do arrependimento.
No caso em que o chamado "caminho
penitencial" lhes fosse aplicado – tendo ainda que se definir em que
consistiria esse caminho penitencial – e que o novo casal continuasse na
comunidade, pode-se dizer que se acolheu um casal divorciado recasado, o
que é positivo. Contudo, quais não seriam os sentimentos e a situação
daquele ou daquela que foi abandonado e que se afastou da Igreja, sem no
entanto ter contraído nova união por crer na validade do seu primeiro
casamento?...
Reflete-se muito sobre os casais
recasados que voltam à caminhada, incluindo os que foram abandonados e
contraíram uma nova união, mas reflete-se pouco ou nada sobre as pessoas
que foram abandonadas e que, por não aceitarem o abandono e acreditarem
na validade de seu casamento (e do amor que o fundou), não aceitam a
nova união do cônjuge que se foi. O agravante hoje é que o cônjuge que
se foi e se casou de novo na verdade não se foi e continua ao lado com a
nova família, causando assim o afastamento da primeira mulher ou do
primeiro marido da vida da comunidade. Ainda que a parte abandonada
venha a perdoar a traição da outra parte, como se espera de um bom
cristão, a comunidade local pode se deparar com um grande dilema nas
situações dos recasados: estar acolhendo um e afastando o outro! As
soluções propostas, quaisquer que sejam elas, não evitarão o confronto
com tal dilema. Um homem ou uma mulher que amou profundamente e
exclusivamente alguém, quando se vê traído(a) e abandonado(a) de modo
injusto passa por um processo de perda equiparado quase à morte de um
ente querido, que não é fácil enfrentar.
Um dos grandes argumentos avançados em
favor da abertura do acesso à comunhão aos divorciados recasados
consiste em dizer que não há pecado que não possa ser perdoado. Sem
pretensões de aqui refletir de modo apropriado sobre tal argumento,
caberia repensar a teologia do pecado em relação com a teologia do
sacramento do matrimônio, levando em consideração certas consequências
temporais do mal cometido. Com a devida reserva exigida pela categoria
da analogia, não se poderia dizer que quando a doutrina sobre o pecado
atual diz que um assassino é perdoado, mas mesmo assim deve pagar sua
pena em presídio, ou que o perdão a um grande corrupto implicaria a
devolução do que foi usurpado, isso não poderia ser mutatis mutandis
pensado em relação à "pena" do afastamento da comunhão pelos divorciados
recasados? Todavia, alguns recordam que houve quem teria dito que seria
então melhor matar sua ex-mulher, pois assim teria perdão, já que
enquanto ela estiver viva, ele continuaria num pecado que não tem
perdão. Mas, ao cumprir pena por seu assassinato, este homem não
perderia para sempre ou durante grande parte da sua vida a comunhão
permanente de sua nova mulher? Ainda que possa retornar à comunhão
eucarística pelo perdão, sofrerá uma consequência temporal do seu pecado
grave, não tendo a comunhão permanente com a mulher com quem se casou
novamente e sua comunhão com a comunidade eclesial fica também bastante
fragilizada, ainda que no presídio se possa criar esses laços de vida
cristã.
De fato, poder-se-ia aprofundar a
questão do perdão para os casais recasados com muito tempo de vida, onde
a primeira união já não existe há muito tempo, e em relação à qual não
houve possibilidade de declaração de nulidade. No entanto, esse perdão,
sobretudo para um primeiro casamento que se considerou válido e produziu
frutos, incluindo a geração de filhos, apagaria todas as consequências
temporais da separação ou do divórcio? Seria exagerado pensar que a
ruptura do sacramento do matrimônio, ruptura de uma comunhão íntima,
mantenha-se "relembrada" pelo não acesso à Eucaristia, ou seja, à
comunhão por excelência com Jesus Cristo, sobretudo que, para uma das
partes, essa seraparão pode ainda significar ausência de comunhão com a
pessoa amada, que era tudo para ela? A analogia entre a comunhão
perfeita de Cristo e a Igreja e o homem e a mulher no sacramento do
matrimônio não nos autorizaria a refletir neste sentido?
Mais uma vez, pode-se dizer que, ainda
que se espere um perdão dado pelo homem ou a mulher injustamente
abandonados num casamento que tenha durado alguns anos, e em relação ao
qual não há como se declarar nulidade, imagina-se que seria de difícil
aceitação para a parte abandonada e filhos reconhecer que a Igreja
acolhe e reconhece a nova comunhão de vida daquele que se foi e o recebe
à plena comunhão na Eucaristia, enquanto à parte abandonado, ainda que
possa ter acesso à comunhão eucarística, se vê privada da comunhão de
vida estabelecida pelo sacramento do matrimônio. Seria isso uma atitude
equânime pastoralmente falando? Obviamente que nem todos estão nesta
situação, mas, pelo fato de haver um número considerável que aí se
encontra, a proposta do acesso à comunhão eucarística aos casais em nova
união deve ser muito bem pesada.
Neste contexto, caberia também
aprofundar o tema da comunhão espiritual, como apontado no n. 53, e
responder à objeção que diz que quem recebe Cristo espiritualmente
poderia também recebê-lo sacramentalmente (aprofundamento precioso sobre
o tema é dado por J. J. Pérez-Soba; S. Kampowski. Il vangelo della
famiglia nel dibattito sinodale: oltre la proposta del Cardinal Kasper.
Siena: Cantagalli, 2014, p. 138s.). A distinção sobre os graus e modos
de presença de Cristo na Igreja (na Palavra, na assembleia, na
Eucaristia, no celebrante e em todo batizado) e noutras confissões
cristãs (mesmo não participando da Eucaristia, encontram e vivem com o
Cristo) e no mundo (nos pequeninos e sofredores, e nas pessoas de
boa-vontade etc.) pode elucidar a participação diferenciada no mistério
da vida de Cristo. Ademais, um recurso à teologia de Santo Tomás de
Aquino sobre o sacramento da Eucaristia nos ajudaria a recordar que os
efeitos salvíficos desse sacramento não estão vinculados à comunhão
eucarística, mas são aplicados a todos participantes da celebração do
mesmo e sobre toda a humanidade. A isso acrescente-se a necessidade de
uma maior conscientização sobre a recepção da comunhão, aparentemente
banalizada em nossos tempos. Como também o Papa emérito Bento XVI
afirmou no texto já citado, "Um sério exame de si, que pode até mesmo
conduzir a renunciar à comunhão, nos faria [...] sentir de modo novo a
grandeza do dom da eucaristia e isso representaria ao mesmo tempo uma
forma de solidariedade com os divorciados recasados." E por que não
pensar que isso também seja assumido pelo celebrante da eucaristia, em
relação ao qual, parece, não haver orientação a uma comunhão compulsória
em cada celebração?
2 – Proposta para a próxima assembleia sinodal a respeito dos recasados
Como já afirmado acima, as questões não
pretendem eliminar o debate quanto a esse tema. No entanto, parece
importante, a partir das próprias perguntas da questão n. 38 do
questionário, se esboçar outras possibilidades de acolhimento e
comprometimento dos casais divorciados recasados no seio da Igreja. Não
se trata de apontar vias "paliativas", como o afirmaram alguns (de
resto, a via do acesso à comunhão também é paliativa, pois nunca
resolveria totalmente as questões humanas do divórcio) ou, muito menos,
uma saída estratégica para se evitar o confronto com essas questões. Mas
trata-se de evitar que a reflexão esteja somente à mercê da polaridade
entre o acesso ou não à comunhão eucarística. E, para tanto, se faz aqui
apelo a uma via não muito explorada durante o Sínodo – embora tenha
sido proposta – e sugerida em dezembro passado pelos dois papas.
Todavia, cabe também recordar que a via
da agilização e acessibilidade ao processo matrimonial, como refletida
no n. 49 dos Linamenta, merece também maior atenção, por não só ter uma
adesão mais equilibrada, mas porque, de fato, muitas situações (talvez a
maioria) poderiam ser por ela atendidas adequadamente. Quanto a esse
tema, é necessário retomar o que o Papa Bento XVI, em várias ocasiões,
já afirmará a respeito da falta de fé de muitos batizados (pagãos
batizados), sobre a qual se deveria aprofundar quando se trata da
recepção e da validade do sacramento do matrimônio. Tal argumentação
também reaparece no seu texto publicado recentemente, em que o papa
emérito corrige a conclusão do seu artigo de 1972.
Voltando à via proposta recentemente
pelos dois papas, a questão que a norteia é a seguinte: como podem viver
quotidianamente a vida de fé cristã no seio da comunidade eclesial? Ou,
para retomar parte da questão n. 38, "quais sugestões para resolver
formas de impedimentos indevidas ou desnecessárias" ?
a - A orientação do magistério recente
Na Familiaris consortio, n. 84, pede-se,
em primeiro lugar, que se discirna bem as situações. E se afirma que a
Igreja não pode abandonar os fiéis divorciados recasados, pois não estão
separados dela. Enquanto batizados, devem participar da vida eclesial
através de várias atividades, entre elas destaque-se a educação dos
filhos na fé, também reafirmada pelo Catecismo (cf. n. 1651). A
Exortação apostólica Sacramentum caritatis, n. 27, reforça a ideia de
pertença à Igreja, e, dentre vários modos de participação na vida
eclesial, evoca também a educação dos filhos.
b – Os questionamentos na práxis pastoral
O Catecismo da Igreja Católica (CIgC),
n. 1650, afirma que os fiéis recasados estão "numa situação
objetivamente contrária à lei de Deus. Por isso [...] ficam impedidos de
exercer certas responsabilidades eclesiais." Assim, o discernimento
sobre o que o casal em nova união estável ou um deles pode ou não
realizar no seio da comunidade, pode ou não assumir, tem ficado a
critério do seu pastor, variando desde a autorização à comunhão à
proibição de se fazer uma leitura durante a celebração eucarística.
Nesse contexto, faz-se necessário citar o texto Sulla pastorale dei
divorziati risposati (1998), de autoria da Congregação da Doutrina para a
Fé, publicado na coleção Documenti, commenti e studi. O texto indica
quais seriam essas responsabilidades vedadas a esses fiéis e procura dar
as razões canônico-pastorais. Assim, não podem ser padrinhos de batismo
ou crisma; assumir os "serviços litúrgicos" (Leitor e ministro da
Eucaristia) e os "serviços catequéticos" (professor de religião,
catequista de primeira comunhão ou crisma); ser testemunha de casamento;
e fazer parte do Conselho Pastoral Diocesano ou conselhos paroquiais.
Alguns questionamentos devem ser feitos a
respeito do referido texto: tratar-se-ia de documento emanado da
Congregação para a Doutrina da Fé ou de comentário ou estudo, já que
publicado na coleção "Documenti, commenti e studi"? Se é documento, por
que razão não consta da lista dos documentos disponíveis no site da
Santa Sé, na parte reservada à Congregação? Por que não foi traduzido?
Foi aprovado em audiência com o Santo Padre? Note-se que a Exortação
apostólica Sacramentum caritatis, publicada posteriormente a esse texto,
quando aborda a questão da participação dos fiéis recasados na vida da
Igreja e na celebração eucarística (cf. supra), não faz referência ao
texto.
Há difuso desconhecimento do referido
texto, porém ainda vigora em boa parte das Igrejas particulares a
proibição de que pessoas unidas em nova união estável sejam admitidas
como padrinhos e madrinhas. No entanto, algumas têm feito exceções,
aceitando de modo excepcional aqueles que estão "engajados na comunidade
eclesial". Por outro lado, outras pedem que seja revista e
flexibilizada a interpretação dada ao cânon 874 § 1, 3º, a respeito do
encargo de padrinho ou madrinha. O mesmo se diga em relação a outras
funções eclesiais, tais como serviços litúrgicos, catequéticos e à
participação em Conselhos Pastorais diocesanos ou paroquiais.
No sentido de uma eventual revisão desse
texto, advogam tano o Papa Francisco como o Papa Emérito Bento XVI. Na
entrevista dada pelo Papa Francisco ao Jornal Lanación, acima citada, o
papa questiona: "[Os recasados] Não estão excomungados, é verdade. Mas
não podem ser padrinhos de batismo, não podem ler a leitura na missa,
não podem dar a comunhão, não podem ensinar a catequese, não podem ao
todo umas sete coisas; tenho a lista aí. Parem! Se eu conto isso
pareceriam excomungados de fato! Então, abram as portas um pouco mais!
Por que não podem ser padrinhos? 'Não, veja, que testemunho vão dar ao
afilhado." O testemunho de um homem e uma mulher que lhe dizem: 'Olha,
querido, eu me equivoquei, eu escorreguei neste ponto, mas creio que o
Senhor me quer, e quero seguir a Deus, o pecado não me venceu, mas antes
sigo adiante.' Haveria maior testemunho cristão do que esse? [...] Ou
seja, temos que começar a mudar um pouco as coisas, as orientações
valorativas."
Por sua vez, o Papa Bento XVI, num texto
publicado no final do ano passado (03/12) no site
chiesa.expressoonline, já mencionado acima, afirma: "No número 84 [da
Familiaris consortio] está escrito: 'Juntamente com o Sínodo, exorto
calorosamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis, a fim de que
ajudem os divorciados procurando com solícita caridade que não se
considerem separados da Igreja [...]. A Igreja ore por eles, os
encoraje, demonstre-se mãe misericordiosa e assim os sustente na fé e na
esperança.' Com isso, à pastoral se confia uma tarefa importante, que
talvez não foi ainda transposta o suficiente na vida quotidiana da
Igreja. Alguns detalhes são indicados na própria exortação. Nela está
dito que essas pessoas, em quanto batizadas, podem participar na vida da
Igreja, e que justamente devem o fazer. São elencadas as atividades
cristãs que para eles são possíveis e necessárias. Todavia, talvez se
necessitaria sublinhar com maior clareza o que podem fazer os pastores e
os irmãos na fé para que eles possam sentir verdadeiramente o amor da
Igreja. Penso que necessitaria lhes reconhecer a possibilidade de
participação nas associações eclesiais e também de aceitar que sejam
padrinho ou madrinha, o que no momento o direito não prevê." (grifo
nosso)
As propostas que se seguem, com suas breves justificativas, vão neste sentido.
c - A função de padrinho ou de madrinha de batismo ou de crisma
Reza o cânon 874, § 1.º, item 3.º, do
CIC: "Sit catholicus, confirmatus et sanctissimum Eucharistiae
sacramentum iam receperit, idemque vitam ducat fidei et muneri
suscipiendo congruam". A frase ora sublinhada denota a exigência legal
de que o padrinho ou a madrinha viva de modo congruente com a fé e com o
múnus assumido.
Preceitua o cânon 18 do CIC: "Leges quae
poena statuunt aut liberum iurium exercitium coarctant aut exceptionem a
lege continent, strictae subsunt interpretationi". Trata-se deveras de
um princípio válido tanto para o direito canônico como para o direito
civil. Ou seja, as leis que coarctam o exercício de direitos devem ser
interpretadas em sentido estrito e não amplo. O próprio cânon 874
poderia ter arrolado os "casados em nova união" entre os que não se
qualificam para o exercício da missão de padrinho ou madrinha. Mas não o
fez. Decerto, o rol do cânon é taxativo e não exemplificativo; em
outras palavras, não se poderiam propor requisitos além dos que constam
do mencionado cânon.
O pároco, pastor próprio da comunidade,
sob a orientação do bispo, auxiliado pelo bom senso da comunidade
paroquial, poderia aferir, no caso concreto, se a pessoa "recasada", ao
seu modo, leva uma vida coerente com a fé e com a eventual missão de ser
padrinho ou madrinha de batismo ou crisma.
d - Outras funções na vida pastoral e litúrgica da Igreja
A respeito das outras funções ou
serviços elencados pelo texto da Congregação para a Doutrina da Fé, há
que se realizar uma avaliação diferenciada daquilo que é proposto pelo
mesmo. Quando o texto evoca os "serviços litúrgicos", detém-se no
serviço de leitor e ministro extraordinário da Eucaristia. Por coerência
com a situação na qual os fiéis em segunda união estável se encontram,
compreende-se o impedimento ao exercício do ministério extraordinário da
Eucaristia. Todavia, não pouca dificuldade tem surgido quando o assunto
é o "serviço de leitor". Ao que se refere o texto? Ao leitor instituído
ou a qualquer leitor ad hoc? Caberia maior clareza em relação à
possibilidade de se aceitar esses fiéis, de comprovada e reconhecida
caminhada comunitária, na vida litúrgica da Igreja. O texto da
Sacramentum caritatis fala em participação desses casais na Santa Missa.
A participação na Santa Missa deve ser "consciente, ativa e frutuosa",
segundo a Instrução Redemptionis Sacramentum (RS), n. 4. Quando uma
pessoa ou um casal em nova união participa da Santa Missa, poder-se-ia
admitir sua efetiva participação, enquanto batizados (cf. FC, n. 84), na
ação litúrgica, através das leituras, da recitação ou canto do salmo,
bem como de outros atos que estejam conforme as orientações sobre a
atuação dos leigos na celebração litúrgica, segundo os n. 43-47 da RS.
No que tange aos "serviços catequéticos"
(professor de religião, catequista de primeira comunhão ou crisma), não
se poderia argumentar que, assim como os casais em nova união estável
são convidados a educar seus filhos na fé (cf. FC, n. 84; CIgC n. 1651),
não poderiam eles exercer também o papel de transmissores da fé para
outras crianças, adolescentes e jovens?
Em relação ao exercício da função de
testemunha de casamento, talvez se exija maior discernimento pastoral,
sendo por vezes, como diz o texto da Congregação para a Doutrina da Fé,
desaconselhada.
A participação no Conselho Pastoral
Diocesano ou nos conselhos paroquiais estaria vedada com base na
interpretação do cânon 512 §13, que reza o seguinte: "Para o conselho
pastoral não se escolham senão fiéis de fé firme, de bons costumes e
notáveis pela prudência". Cabe se perguntar se os fiéis em nova união
estável, chamados a participar da vida da Igreja (cf. FC, n. 84) ou a
cooperarem na vida comunitária (cf. SC, n. 27), não poderiam também ter
uma fé firme, bons costumes e serem notáveis pela prudência, ainda que
em situação irregular. O cânon talvez mereça uma interpretação mais
flexível.
e – A caridade pastoral como critério para a orientação das situações difíceis
Há uma necessária prudência a ser
adotada no que concerne a acolhida dos fiéis recasados, a fim de que não
se pretenda equacionar ligeiramente recentes rupturas, causando graves
injustiças para com os cônjuges que preferiram não se recasar e manter
sua fidelidade ao casamento rompido. A caridade pastoral deve ser
exercida para conciliar a verdade das situações difíceis com a
misericórdia em relação a todos os que sofrem com o término de um
casamento. Seguindo um antigo critério eclesial, para os ofícios,
funções e responsabilidades na vida da Igreja e da comunidade local,
evitar-se-á a escolha de alguém cuja indicação venha a causar
escândalos. O bom-senso pastoral tem aqui um lugar relevante, a fim de
se procurar incluir as pessoas em nova união estável na vida eclesial da
comunidade, tanto a nível litúrgico quanto pastoral. Por outro lado, é
necessário também haver orientações da parte da Igreja particular,
proximidade do pastor da comunidade com o seu bispo e seu presbitério,
bem como com a própria comunidade no exercício da avaliação das
situações em vista de maior acolhida e do engajamento dos fiéis em nova
união estável na vida da Igreja.
Nenhum comentário:
Postar um comentário