Cardeal Odilo P. Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)
Desde 2005, a Igreja Católica no Brasil,
por iniciativa da assembleia geral da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), dedica a primeira semana de outubro à valorização e
defesa da vida e, no dia 8, comemora-se o dia do nascituro. Durante essa
semana, também é lembrado São Francisco de Assis, patrono da natureza e
dos animais. No centro dessas iniciativas está a valorização da vida em
todas as suas formas.
O papa Francisco dedicou ao cuidado da
“casa comum” sua encíclica “Laudato sì” (2015), onde trata da natureza
como o ambiente da vida, que abriga e sustenta todas as formas de vida;
por isso, precisa ser respeitada e zelada pelo homem, para que ela
preserve a sua rica diversidade e não venha a ser destruída. E que seja
espaço de solidariedade e de fraternidade, onde todos tenham acesso aos
bens necessários para viver.
O texto do Papa, mais do que uma
“encíclica verde”, é um documento de cunho social e ético, que trata das
relações do homem com a natureza e das relações sociais no contexto da
“casa comum”. O cuidado prudente da natureza, ou o seu descuido, não
traz consequências apenas para a própria natureza, mas também para o
homem. Por isso, o Pontífice traz na encíclica os conceitos de ecologia
humana, relativo ao ambiente dignificante para a vida humana, e de
ecologia do homem, referido à natureza do próprio ser humano, que deve
ser respeitada e não manipulada ou deturpada.
Quando se trata da defesa da vida,
penso, acima de tudo, na dignidade e inviolabilidade da vida humana e na
promoção de tudo o que possa evitar agressões contra ela. O ser humano é
parte da natureza e depende dela; ao mesmo tempo, ele ocupa uma posição
absolutamente única no conjunto dos seres deste mundo; e isso também
lhe confere uma responsabilidade ímpar em relação ao cuidado da casa
comum e dos outros homens.
Persistem as agressões contra a vida
humana e até assumem formas cada vez mais preocupantes. As guerras
matam, ferem e desalojam, obrigando populações inteiras a migrar; e onde
não há conflitos declarados, como no Brasil, as várias formas de
violência matam mais que as guerras em andamento nos vários países. E há
também as vítimas das injustiças sociais, da fome ou de doenças e da
falta de condições de vida digna e saudável.
E quantas são as vidas humanas excluídas
do seu direito de verem a luz! No Supremo Tribunal Federal está
pendente uma decisão sobre a legalidade do aborto de bebês com
microcefalia, o que poderá vir a se configurar como mais um caso de
aborto “legal” no Brasil. As questões envolvidas não são poucas, como o
conforto da mulher gestante e de sua família, a frustração dos sonhos
que toda mãe tem em relação ao filho que gera, o ônus social decorrente
do cuidado de pessoas não totalmente autônomos... Mas está em jogo,
sobretudo, a decisão de tirar a vida de um ser humano, que teve a
infelicidade de ser afetado no seu desenvolvimento cerebral por causas
absolutamente alheias à sua responsabilidade. Além do mais, coloca-se o
problema do diagnóstico seguro para cada caso pois, pelo que se sabe, a
microcefalia não é constatável com segurança antes de um estágio
avançado da gravidez. Na cultura tecnocrática e da eficiência temos
dificuldades para lidar com as deficiências e fragilidades humanas!
Os “defeituosos” não terão o direito de
viver? Só os sadios, os perfeitos, os que saíram conforme encomenda? Se o
aborto de bebês com microcefalia for aprovado, será aberta uma porta
perigosa para a eugenia, que dificilmente poderá ser, depois, fechada de
novo. Quais seriam as próximas categorias de fetos ou bebês defeituosos
a serem incluídos na lista dos “legalmente abortáveis”? Alega-se que
outros países já resolveram essa questão pela legalização ampla e
generalizada do aborto, conforme desejo da gestante ou de terceiros.
Infelizmente, isso é verdade, mas não deveria ser tomado como bom
exemplo, ou sinal de avanço jurídico e moral a ser imitado. Regimes
totalitários, ao longo da História, recorreram à eugenia para “depurar” a
população, mas isso tem sido rejeitado pelo senso moral dos povos
civilizados.
No Brasil ainda falta uma legislação
específica, que valorize e tutele a vida humana antes do nascimento. A
Constituição brasileira consagra o direito inviolável à vida; apesar
disso, a violação do direito à vida de seres humanos ainda por nascer é
tolerada e até promovida por projetos que pretendem tornar legal o
aborto, quer de maneira generalizada, quer de maneira pontual, para
situações específicas.
No Congresso Nacional tramita o Estatuto
do Nascituro há vários anos, mas não avança e os motivos são
conhecidos: ele seria uma barreira para projetos abortistas, que também
não faltam no Congresso. O Estatuto poderia ser um válido instrumento de
proteção da vida nascente e causa estranheza constatar que a legislação
brasileira não tenha avançado nessa linha. Também falta uma legislação
adequada sobre a manipulação genética e mesmo de embriões. Essas
questões relativamente novas, mas complexas do ponto de vista ético,
deveriam merecer uma atenção especial dos legisladores.
O Estatuto do Nascituro não anularia a
legislação vigente, nem o Código Penal; e não deixaria de proteger a
mulher gestante. Pelo contrário: traria maior segurança a ela, dando-lhe
garantias para uma gravidez digna e segura. O equívoco praticado com
frequência consiste em opor a gestante ao seu bebê e, com facilidade, é
negado o direito deste para resguardar o direito da mãe. O Estado tem a
obrigação de cuidar de ambos e de proteger, mais ainda, a parte mais
frágil e indefesa.
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