Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)
No
dia 25 de junho passado, o Conselho dos Direitos Humanos da ONU aprovou
uma resolução de "proteção à família", reconhecendo-a como núcleo
natural, e fundamental da sociedade, com "direito à proteção por parte
da sociedade e do Estado".
O Conselho ainda reconheceu que "a
família tem a responsabilidade primária de nutrir e proteger as
crianças, para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua
personalidade"; e, para tanto, que estas "devem crescer num ambiente
familiar e numa atmosfera de felicidade, amor e entendimento".
Pareceria que a ONU aprovou o óbvio ao
se referir ao direito das crianças, pois é difícil imaginar que alguém
possa afirmar o contrário. Os problemas aparecem quando se tomam em
consideração a família e seu papel fundamental para a pessoa, a
sociedade e o Estado; neste caso, a resolução da ONU contraria uma
tendência bastante difundida de descrença e até de abandono da família,
vista por muitos como instituição falida; não será, justamente, porque
há uma forte percepção de que mais e mais crianças, e não apenas elas,
estão expostas a graves problemas decorrentes da desestruturação da
família e do seu desamparo por parte da sociedade e do Estado?
A Igreja Católica, que tem valorizado e
defendido a família e suas atribuições naturais, não desconhece as
dificuldades que sacodem a instituição familiar; mas não a considera
como um barco à deriva, que deva ser abandonado à própria sorte. Mesmo
em tempos de crise, a instituição familiar tem merecido o melhor dos
esforços da Igreja, para ampará-la e fortalecê-la em sua dignidade e
função social.
Compreende-se, assim, por que o papa
Francisco convocou uma assembléia extraordinária do Sínodo dos Bispos,
com o objetivo de tratar dos atuais desafios da família, que interpelam
também a missão da própria Igreja. Sendo o primeiro Sínodo presidido por
Francisco, pode-se intuir a importância que ele dá à família.
No final de junho, foi publicado o
Instrumento de trabalho do Sínodo, um texto elaborado a partir das
respostas a um amplo questionário espalhado pelas dioceses do mundo
inteiro, visando obter o conhecimento da atual situação da família e dos
desafios por ela enfrentados nos diversos países e contextos culturais.
Ainda não é um documento conclusivo, mas uma proposta de reflexão.
As respostas trataram de uma lista
extensa de situações vividas pela família, que vão da difusão dos
ensinamentos da Igreja sobre a família e o casamento, e sua recepção, ao
trato da Igreja com tais questões, às pressões culturais, econômicas e
morais sofridas pela família; mas também contemplam as atuais realidades
familiares, como as novas uniões depois de uma separação ou divórcio e
sua participação na vida da Igreja; as uniões sem formalização alguma,
nem civil, nem religiosa; a aparente descrença no casamento e na família
e a transmissão responsável da vida; a educação dos filhos, cada vez
mais fora da responsabilidade dos pais; as uniões de pessoas do mesmo
sexo, com a pretensão de ter status de casamento e família; as políticas
contrárias ao casamento e à família em várias partes do mundo...
Não faltam questões antigas e novas, nem
sempre ajustadas ao Evangelho e à doutrina da Igreja. O que, então,
leva a Igreja, convocada pelo papa Francisco, a se debruçar sobre essas
questões, é a preocupação com as pessoas envolvidas nessas diversas
situações concretas, sem abandoná-las, nem lhes dar a impressão de que a
Igreja e o próprio Deus não têm mais nada para lhes oferecer. O
Evangelho, de toda maneira, continua sendo "boa nova" de salvação e de
vida para todos; as dificuldades atuais não são, nem devem ser, a
referência última para a família e a pessoa humana.
Participarão da assembléia sinodal
extraordinária os presidentes das Conferências Episcopais, além de
outras pessoas, a critério do papa. Não se espere que o Sínodo vá
enfrentar esses temas de maneira pragmática, buscando apenas chegar a um
simplista "pode-não pode". As questões são profundas e não dependem de
uma atitude voluntarista da Igreja, amoldável aos humores do tempo e dos
movimentos culturais.
Elas se inscrevem numa crise
antropológica e cultural aguda, que atinge a própria pessoa humana, sua
identidade e sentido. Quando o ser humano é apreciado apenas do ponto de
vista instrumental e utilitarista, ele passa a ser objeto de uso e meio
para atingir objetivos de outras pessoas, da sociedade ou do Estado; e
já não é mais vista um fim em si mesmo, como ensinava Emmanuel Kant: "o
ser humano nunca deve ser tido como um meio, mas sempre como um fim em
si mesmo".
Essa verdadeira deturpação do sentido do
ser humano também leva à concepção da vida como aventura voltada sobre o
próprio indivíduo, para o usufruto das sensações do momento, sem o
horizonte da alteridade, no qual ele encontra a sua verdadeira expressão
e sua realização mais plena. E introduz uma grande desorientação nas
relações humanas, no sentido do amor, bem como nas instituições sociais
mais elementares, como o casamento e a família, anteriores à própria
sociedade organizada e ao Estado.
A assembleia extraordinária do Sínodo,
deste ano, não dará uma palavra conclusiva sobre as questões postas, mas
será uma etapa do "caminho sinodal", que se concluirá na 14ª.
assembléia ordinária do Sínodo, em outubro de 2015. Agora, o objetivo é
fazer uma reflexão aprofundada sobre a situação da família e do
casamento, para compreender melhor os motivos da sua crise e discernir
sobre as novas perspectivas que se abrem para a missão da Igreja.
Em 2015, a reflexão será de fundo
antropológico, sobre a pessoa humana e a família à luz da fé cristã.
Então sim, será o momento de oferecer diretrizes pastorais novas.