Conhecida na humanidade desde tempos
imemoriais, a escravidão ainda continua viva, de diversas maneiras, um
pouco por toda parte; é a sujeição da pessoa por outra pessoa, que se
apodera da liberdade e da autonomia do seu semelhante, explorando-o para
interesses próprios, aviltando a sua dignidade e reduzindo-o à condição
de objeto, passível até mesmo de compra e venda.
"É
um delito de lesa humanidade", já havia recordado o Pontífice num
discurso à delegação internacional da Associação de Direito Penal, em 23
de outubro de 2014. Apesar de o Direito Internacional já reconhecer a
cada pessoa o direito inderrogável de não ser reduzida à escravidão e à
servidão, essa triste prática está longe de ter sido banida da vida
cotidiana.
Ainda há milhões de pessoas no mundo,
adultas e crianças, homens e mulheres de todas as idades, constrangidas a
viver em condições semelhantes às da escravidão. E o Papa refere-se aos
trabalhadores, mesmo menores, que trabalham ilegalmente ou são forçados
a derramar seu suor, sem as garantias mínimas de salário digno e de
seguridade social, definidas nas convenções internacionais do trabalho.
Há multidões de migrantes, enganados e
explorados de maneira inescrupulosa na sua precária busca por vida
melhor; muitos são transportados de maneira desumana, despojados de seus
bens e de sua liberdade, forçados a viver e trabalhar na
clandestinidade, documentos retidos, abusados sexualmente e chantageados
de todas as formas.
São muito numerosos os escravos e
escravas sexuais, mesmo menores, nas redes impiedosas da exploração da
prostituição; esta mazela da humanidade, antiga e sempre reciclada,
envolve o tráfico de pessoas por organizações poderosas em todos os
níveis sociais e econômicos. Mas há também as pessoas reduzidas à
escravidão no tráfico e na comercialização de órgãos humanos, no
recrutamento forçado de pessoas, mesmo crianças, para serem combatentes
em guerras fratricidas; há as vítimas do sequestro, feitas escravas e
moeda de troca na busca de resgates; e quantos são os escravos do
tráfico e da comercialização da droga e da dependência química,
aniquilados em sua dignidade e esvaziados da vontade de viver?!
A escravidão "é uma ferida no corpo da
humanidade contemporânea e uma chaga na carne de Cristo", lamenta
Francisco. Na antropologia cristã, todos os seres humanos estão ligados
entre si e são parte de "corpo de Cristo". Como se explica que a
escravidão, esta vergonha da humanidade, ainda persista? Há muitos
motivos, mas na raiz desse mal está uma concepção antropológica
inaceitável, segundo a qual não há dignidade e direitos fundamentais
universalmente válidos para a pessoa humana.
Esta concepção distorcida e corrompida
leva a tratar semelhantes como se não fossem seres humanos de igual
dignidade, irmãos e irmãs em humanidade; como se fossem criaturas
inferiores, objetos de uso e de proveito de outros. No fundo, nega-se o
reconhecimento da humanidade do outro. Mas a pessoa humana jamais
deveria ser vista e tratada como objeto e meio; sempre, como sujeito e
fim por ela mesma.
Várias causas sociais também concorrem
para a prática da escravatura, como a pobreza insuportável, o
subdesenvolvimento e a exclusão social, a falta de acesso à educação, as
escassas oportunidades para orientar a vida de maneira digna. Muitas
vezes, as vítimas da escravidão procuram uma saída para as condições
sub-humanas em que vivem e acabam confiando em promessas de vida melhor
feitas por hábeis aliciadores das redes do tráfico humano.
Não raro, as vítimas da escravidão já
foram, antes, golpeadas pelos flagelos da guerra, da violência, do
terrorismo, da criminalidade e da discriminação social e religiosa,
vendo-se obrigadas a abandonar tudo, a emigrar, a enfrentar toda sorte
de incertezas e precariedades; tornam-se, então, presas fáceis de
chacais humanos inescrupulosos, prontos para envolvê-los num círculo de
miséria e corrupção ainda mais aviltantes.
Diante do quadro vergonhoso das
escravidões modernas, o que precisa ser feito? Francisco volta ao
problema da "globalização da indiferença": não podemos fechar os olhos
àquilo que se passa ao nosso redor, como se não nos dissesse respeito. A
renovação da consciência comum sobre a dignidade humana, nossa e de
cada ser humano, é fundamental. O que é feito ao próximo diz respeito
também a cada membro da família humana. Em cada pessoa reduzida à
condição de escrava, a nossa própria dignidade também é atingida e
ferida. E isto não nos deve deixar indiferentes.
Mas o Papa também apela para um tríplice
empenho, em nível institucional: a prevenção contra a prática da
escravidão, a proteção às vítimas e a ação judicial contra os
responsáveis. Os Estados e organizações políticas e diplomáticas
internacionais precisam aprimorar a legislação e as práticas preventivas
e repressivas contra esse delito nefando; muito podem fazer as
organizações da sociedade civil, até mesmo para se criar uma consciência
mais ampla pela rejeição do lucro fácil e das vantagens do consumidor,
conseguidas mediante a exploração da mão de obra semiescrava.
O fenômeno da escravidão moderna é
mundial e sua solução excede as competências de uma única comunidade ou
nação. Esta ferida no corpo da humanidade precisa ser sanada com o
esforço de todos e mediante o bálsamo dos verdadeiros valores humanos e
éticos. Francisco apela para a globalização da solidariedade, para que
não nos tornemos cúmplices da escravidão e do sofrimento de inumeráveis
irmãos.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)
Publicado em O Estado de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário